quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Visita à Golegã




Todos os anos, por altura do São Martinho, a Golegã, com o pretexto de celebrar o cavalo e o vinho novo, agiganta-se e enche-se de gente, mas depois retorna à pacatez de sempre. O Hotel Lusitano não pretende acabar com o sossego, mas está apostado em colocar a vila e o Ribatejo no mapa o ano inteiro

A custo, separo-me do edredão fofo e vou até à janela. A neblina chegou de mansinho pela noite e não se foi embora. Distingo na bruma o casario baixo circundante, tão típico da Golegã, e o chalé de Carlos Relvas, mas não avisto, para lá dos limites da vila, a campina, com as suas alvercas e chaboucos, que ainda ontem lá estava. É tempo de descer, tomar o pequeno-almoço e o Sol dar-nos-á um ar da sua graça. Mesmo num dia de Inverno como este.

Quem se habituou a associar a autoproclamada capital nacional do cavalo ao rebuliço das duas primeiras semanas de Novembro, altura em que a Golegã atrai a si apreciadores e curiosos do mundo inteiro, talvez demore a acostumar-se à pacatez com que se vive aqui no resto do ano. O Hotel Lusitano, inaugurado há cerca de um ano, pretende beneficiar da proximidade de Lisboa – sem trânsito, a viagem faz-se em menos de uma 1h30 – para dar a conhecer a hospitalidade e a paisagem ribatejanas. Mas não vá à espera do óbvio. Do mesmo modo que estilizaram a figura do cavalo para fazer dele o seu ícone, apenas presente em subtis pormenores, Teresa e Raquel, duas engenheiras de formação que se encarregaram dos interiores, não recriaram no hotel a casa ou a quinta ribatejanas.

José Dias Vieira comprou um belo casarão antigo a dois passos da igreja matriz e do pelourinho. Nele viviam antes duas irmãs idosas, para quem a casa assimétrica de dois pisos se tinha tornado grande demais. O projecto de conversão em hotel foi então entregue ao arquitecto Francisco Quintanilha, entretanto falecido, que tratou, entre outras coisas, de altear o sótão para ganhar um segundo piso e de construir uma nova ala assumidamente contemporânea por contraste com o edifício original.

Resolvida a questão arquitectónica, Teresa e Raquel, noras do proprietário, chamaram
a si o desafio de dar conteúdo a um hotel de 24 quartos, em que apenas quatro são iguais, e transformá-lo numa unidade de charme contemporâneo, sem cair no cliché do design pelo design ou na tentação de enveredar pelo exótico-rural. Aproveitaram soalhos flutuantes, portadas e portas de origem, como a que separa a sala de estar do bar (e que se repete, no primeiro andar, no quarto 115), e trataram de as combinar, na casa antiga, com tons neutros e achocolatados, tecidos agradáveis ao toque, painéis em madeira rendilhada (há um particularmente bonito por cima da lareira, na sala), gravuras de Martins Correia cedidas pelo Museu Equus Polis e muitas peças escolhidas a dedo, que Teresa, graças à sua loja de decoração (ver guia), garimpou junto de vários designers e artistas plásticos.

E foram detalhes como as almofadas bordadas de Teresa Martins, os apliques de parede Caboche, desenhados por Patricia Urquiola e Eliana Gerotto para a Foscarini, os candeeiros de Luísa Peixoto ou as jarras sete dias, de Sigolène Prébois e Catherine Lévy para a Tsé & Tsé, que não passaram despercebidos à revista Condé Nast Traveler e que já levaram as duas a serem convidadas para decorar um projecto nas ilhas Caimão. Aliás, todo o mobiliário escuro dos quartos, com linhas simples e ângulos rectos, é da sua autoria, sendo apenas combinado com roupa branca nas camas e tecidos, de cor verde ou laranja, da Designers Guild a forrar cadeiras e otomanas.

Novos rituais
O restaurante está num alpendre fechado, contíguo à sala de estar. É um espaço agradável, com bastante luz natural e boas vistas para o jardim, onde não é improvável cruzarmo-nos com figuras ilustres da terra como o presidente da Câmara. O jovem chef José Avillez prestou consultoria na primeira carta, mas hoje a cozinha está a cargo de Paulo Costa, que passou pelo afamado Eleven, em Lisboa. Com várias tasquinhas à volta, onde se come bem e barato, este restaurante almeja conquistar uma clientela, dentro e fora do hotel, que aprecia detalhes como os copos de água azuis de Aino Aalto ou os talheres da Hepp Exclusiv, mas que também não abdica de um cardápio equilibrado, que saiba tirar partido dos produtos sazonais da região e dar-lhes um toque de modernidade. Um bom exemplo disso são as entradas, onde o chef admite poder “brincar” um pouco mais, sendo possível degustar coisas como um “Torricado de ovos mexidos com farinheira”, por exemplo.

Nem de propósito, o Puro Spa fica em frente.É intenção do hotel recorrer aos serviços de uma nutricionista para ajudar a preparar menus pouco calóricos e que se moldem à ideia de proporcionar “clínicas de bem-estar”; por outras palavras, uma espécie de retiro para descansar, relaxar e desintoxicar. Instalado num pavilhão construído de raiz, onde também passou a funcionar um bar aberto para o jardim, este spa faz por honrar o nome e não se limita, como é prática comum, a uma salinha nos fundos. Nota-se o mesmo cuidado nos detalhes, a começar na boneca de porcelana da artista plástica Maria Rita, autora também das bolas de Pilates revestidas a feltro que substituem as useiras cadeiras, ou nas jarras sete noites da Tsé & Tsé, mas é mais do que (só) isso. Como o arquitecto Quintanilha já não acompanhou a obra, Teresa e Raquel tiveram uma intervenção mais directa na escolha dos materiais, pelo que optaram por deixar as paredes em cimento afagado ou por criar soluções engenhosas como as algas suspensas da Vitra, que proporcionam, juntamente com os colchões (serão poufs?) policromáticos da FatBoy, um ambiente único na sala de repouso. Na piscina coberta, a tepidez da água faz-me esquecer, num ápice, o frio lá fora. Flutuo de olhos postos no tecto robusto de madeira e sinto-me no ventre de um navio.

Tradição ribatejana
Mas nem tudo se resume ao Lusitano, afinal, convém não esquecê-lo, estamos em terra
de cavalos. Animado pela possibilidade de vê-los no seu meio, saio da Golegã, em direcção ao Entroncamento, rumo à Quinta das Vendas.

O caminho é curto e à chegada sou saudado por Luís Miguel, responsável pelos cavalos. Uma vez aqui, pode optar por um sem-número de actividades, nas quais se incluem aulas e passeios, mas aproveito o à-vontade do meu anfitrião, que se trajou a rigor, para sairmos numa das charrettes mais antigas da quinta, puxados pela égua Roca. Decidimos ir até à Quinta da Cardiga, junto ao Tejo e a Vila Nova da Barquinha, mas para isso temos de atravessar uma estrada movimentada.
A égua está nervosa. Apeio-me e ajudo a charrette a passar com segurança. Esta quinta – as cruzes bordadas na pedra dos frontões à entrada não mentem – pertenceu à Ordem dos Templários e depois aos Freires de Cristo.

Na Golegã, e nos seus arredores, existem ainda inúmeras quintas históricas, como a Cardiga e a Broa, onde se continua a perpetuar o apego e o culto da terra

Com o Sol a cair a pique, despeço-me de Luís Miguel e da égua Roca e deixo para a manhã seguinte uma visita à Quinta da Broa. Situada à entrada da Azinhaga, aquela que se diz “a aldeia mais portuguesa do Ribatejo” e partilha a campina com a sua vizinha Golegã, é quase impossível falhar a enorme casa branca, de porte aristocrático, que ladeia a estrada de terra batida até Mato de Miranda. Trata-se de propriedade privada, mas, como é hábito por aqui, o pesado portão de ferro está aberto de par em par e franqueia a entrada para um amplo pátio, rodeado de construções tingidas de matizes invernais. Os actuais donos da quinta, a família Veiga, bem conhecida nas lides tauromáquicas pela coudelaria que leva o seu ferro, estão habituados a que este conjunto de casas agrícolas, com destaque para o palácio velho (cujo interior está repleto de belos frescos restaurados, muitos dos quais alusivos à faina agrícola), desperte a curiosidade de nacionais e estrangeiros.

Talvez por isso, na medida do razoável e dependendo da forma como é feita a abordagem, tentam honrar a tradição antiga, iniciada pelo fundador Rafael José da Cunha, de atender quem bate à porta – com uma diferença: antes, as pessoas vinham pedir um naco de broa (esse costume acabou por determinar a toponímia da quinta); hoje chegam aqui atraídas pela sua história. Quem sabe, um dia, as casas outrora destinadas aos empregados, e agora quase todas vazias, se convertam num belo projecto turístico.

Uma das coisas que mais surpreende na decoração do Hotel Lusitano, e sobretudo para quem chega ali à espera de encontrar menções óbvias ao cavalo, é a sua aposta
em peças de design contemporâneo e de artistas plásticos. Luís Miguel, encarregado da Quinta das Vendas

Por ora, é também pela Azinhaga, que tem um núcleo de solares, ermidas e explorações agrícolas interessante, que se faz o acesso até à Reserva Natural do Paúl do Boquilobo, em tempos refúgio da maior colónia de garças da Península Ibérica. Entre os rios Tejo e Almonda, a reserva estende-se por 529 hectares e encanta pelos seus maciços de salgueiros e freixos. Lamento não ter trazido uma bicicleta comigo, pelo que me contento em caminhar um pouco até ao seu interior, com charcos durante quase todo o ano, onde se encontra uma maior variedade de plantas aquáticas e caniçais. Infelizmente, a Primavera tarda, pelo que não avisto nenhuma das aves aquáticas selvagens (sobretudo da família das garças) que aqui nidificam.

Já de saída para Lisboa, olho para a paisagem calma que me cerca. O rio, o gado e os cavalos à solta nas pastagens, a planura dos campos férteis – numa terra onde muitos têm ainda na agricultura, na pecuária e na exploração das florestas o seu principal sustento – baralham quem veio da cidade grande e se resignou a ouvir falar deste modus vivendi como se estivesse ferido de morte. Muita coisa mudou. A Golegã e o Ribatejo não estão imunes à modernidade nem aos seus contratempos. Mas, como alguém me disse, os ribatejanos estão empenhados em que, pelo menos neste canto de Portugal, não se percam para sempre certos usos e costumes. Nós agradecemos.

> Como ir
Para quem vem do Porto ou de Lisboa pela A1, deve entrar na A23 em Torres Novas/Abrantes e virar no km 17, na direcção de Barquinha/Entroncamento. Depois é só continuar pelo IC3 até à Golegã.

> Onde ficar
Hotel Lusitano – Rua Gil Vicente, 4; tel. 249 979 170; www.hotellusitano.pt
Diárias a partir de €135 (consultar pacotes e promoções sazonais).

> Onde comer
Num raio de 50 km existem inúmeros restaurantes afamados, pelo que é possível, com a ajuda do hotel, se quiser, organizar um roteiro gourmet:
Hotel Lusitano – Rua Gil Vicente, 4; tel. 249 979 170; www.hotellusitano.pt
Preço médio da refeição: €35
O seu restaurante, com vista desafogada para o jardim, não tem paralelo nas redondezas.
Restaurante Lusitanus – Largo Marquês de Pombal, 25
Preço médio da refeição: €12
É um espaço cuidado, debruçado sobre o Largo da Feira, onde se pratica uma boa cozinha regional.
Café Central – Largo da Imaculada Conceição, 9-11
Preço médio da refeição: €13
Cozinha tradicional portuguesa com destaque para o Bife à Central.
Casita D’Avó – Rua Dom Afonso Henriques, 30
Preço médio da refeição: €12
Pequena casa, sem luxos, mas muito procurada pela sua cozinha regional esmerada.

> Onde comprar
Casa Connosco – Av. Dr. José Eduardo Victor das Neves, 35,1.º, Lj. L, Entroncamento; tel. 249 726 250Muitos dos objectos usados na decoração do hotel podem ser adquiridos nesta loja de Teresa Matos.


> O que fazer
O Hotel Lusitano está pronto a ajudá-lo nos seus passeios, a realizar um piquenique ou até mesmo a receber o seu baptismo equestre. Outra vantagem da Golegã é que fica perto de cidades como Santarém ou Tomar.
• Admirar a Igreja Matriz do século XVI, com um belo portal manuelino e painéis de azulejos do século XVII.
• Passear de charrette até várias quintas das redondezas, como a Quinta da Cardiga ou a aristocrática Quinta da Broa.
• Andar de bicicleta pela Reserva Natural do Paúl do Boquilobo.
• Marcar umas lições no picadeiro do Centro Hípico Lusitanus, no Largo Marquês de Pombal, 25.
• Visitar o Museu Municipal de Fotografia Carlos Relvas, no Largo D. Manuel I. Carlos Relvas criou o primeiro estúdio fotográfico do mundo a ser construído de raiz.
• Mime-se no Puro Spa, a funcionar no hotel (aberto ao público em geral), com tratamentos a partir de €40 (mínimo 30 minutos) e pacotes a partir de €240
(mínimo seis sessões).

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